quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Aquele do barraco

- Onde vamos almoçar hoje? - perguntou Pedro.
- Hoje é seu dia de escolher o restaurante, respondeu Alice.
- Então vamo na Casa do Camarão!
Assim, o casal se dirigiu ao térreo do shopping, onde localizava-se o restaurante.
Alice sentou-se de frente para a entrada e Pedro de frente para Alice.
A garçonete, munida de dois cardápios, atendeu o casal com polidez e os deixou, para que pudessem escolher com tranquilidade.
Alice escolheu um wrap de salmão; Pedro escolheu bobó de camarão acompanhado de purê de batata e arroz.
- Algo para beber? - indagou a garçonete.
- Um ice tea zero de limão e uma coca-cola comum, respondeu Alice, habituada com o pedido.
- Senhora, nós não trabalhamos com coca-cola, só com pepsi.
- Ah sim. Pode ser uma pepsi, amor?
- Pode sim, respondeu Pedro.
E a garçonete se retirou.
Este era um dia comum, como todos os outros. O restaurante estava praticamente vazio. Além de Alice e Pedro, havia apenas mais um casal, sentado num canto à direita de Alice, tomando chopp e conversando, como um casal feliz faria.
Alice, que tem o péssimo hábito de observar e criticar as pessoas - hábito originado de seu infeliz TOC (transtorno obsessivo-compulsivo) - reparou que uma mulher gorda, com ares de madame, entrara no restaurante e, com um tom imperativo, ordenou que a garçonete - a mesma que havia atendido o nosso casal - posicionasse a cadeira, que estava na lateral da mesa, no mesmo sentido que a cadeira de Alice.
- É por isso que eu não gosto de pessoas... - comentou Alice, com um ar enojado.
Pedro riu. Ele, que namorava com Alice há mais de 4 anos, sabia o quanto sua namorada se irritava fácil com as pessoas ao seu redor.
Essa senhora que, apesar de estar vestida bregamente e com um cabelo esvoaçante, possuia um ar superior, chamaremos aqui de Madame.
Pois então, a Madame, assim como havia feito anteriormente, ordenou que a garçonete trouxesse o cardápio.
- E rápido! - acrescentou com tom de desprezo.
A garçonete buscou o menu o mais rápido que pôde, mas sem correr. Quando ela se afastava para deixá-la à vontade, assim como fez com o nosso casal, a Madame gritou:
- Onde você pensa que está indo?! Ainda não fiz meu pedido!
- Pois não, senhora. O que deseja?
- Eu quero um camarão com catupiry, acompanhado de arroz e fritas.
- Alguma coisa para a entrada?
- Não.
A garçonete anota o pedido e acrescenta:
- E para beber? Alguma coisa?
- Por enquanto não.
Quando a garçonete ia se retirando, eis que surge um berro:
- Na verdade... - disse a Madame - eu vou querer uma casquinha de salmão para a entrada. E RÁPIDO!
A garçonete confirma com a cabeça e se retira.
Alice não consegue desviar o olhar da cena. Que pessoinha arrogante, pensa.
Passa-se alguns poucos minutos e a garçonete retorna com a casquinha de salmão. A Madame prova e exclama:
- Perfeita!
Quando a garçonete pensa em retirar-se, a voz estridente chama novamente:
- AQUI! Essa casquinha poderia ser melhor, se colocassem um pouquinho mais de creme de leite, para ela ficar mais pastosa.
Pedro ri e comenta:
- O conceito dela de perfeito é diferente do meu, haha.
E a Madame continua:
- E ela poderia ter também um gosto e um sabor mais concentrado de salmão, assim ficaria saborosa.
A garçonete, percebendo que a Madame não iria parar e vendo que o pedido de Pedro havia saido, pede licença e dirige-se ao balcão para buscar o prato. Ela retorna e entrega a Pedro seu pedido e, quando está prestes a retornar ao balcão para pegar o pedido de Alice, uma mão puxa seu braço:
E agora, meus leitores, começa o supracitado barraco. Para aqueles que não entendem o sentido figurado desta palavra, eis o que um dicionário informal da internet sugere: confusão; bate-boca; quiproquó. Ou seja, escândalo. Mas voltemos a nossa história.
- Olha aqui, mocinha. Eu não terminei de falar. Você não pode virar as costas para mim e me deixar falando sozinha, eu sou cliente! E como eu dizia...
A garçonete emenda:
- Senhora, o pedido deles estava no balcão, eu não posso deixar esfriar!
E a Madame perde o controle:
- SUA OBRIGAÇÃO É DE ME OUVIR, SE EU TENHO UMA RECLAMAÇÃO!
- Vou buscar o pedido daquela senhora ali e volto para te atender, replicou a garçonete, notavelmente sem paciência, puxando o seu braço da mão daquela senhora. Ela buscou o prato de Alice e entregou-a, junto com as bebidas pedidas anteriormente.
Nesse mesmo instante a gerente, pacientemente, veio atender a Madame:
- Pois não, senhora. Em que posso te ajudar?
- Você pode começar ensinando a essazinha aí como se atende o público!
(Nesse momento, a garçonete já havia entrado, para não iniciar uma discussão com uma cliente).
A gerente, tentando acalmar a situação, diz:
- Pode fazer suas reclamações e pedidos comigo. Agora sou eu quem vai te atender.
- EU NÃO QUERO VOCÊ! EU QUERO AQUELA OUTRA QUE ESTAVA ME ATENDENDO, AQUELA COM CARA DE LERDA. ELA NÃO É MULHER SUFICIENTE PARA TERMINAR DE ME ATENDER, NÃO? EU QUERO FALAR COM O COZINHEIRO. QUEM É O COZINHEIRO? EU VOU ENSINAR ELE A FAZER COMIDA.
- Nós não temos um cozinheiro. A comida vem semi-pronta, nós apenas aquecemos.
- TÁ ERRADO! A comida TEM que ser fresca, feita na hora! E eu não quero mais essa casquinha, não. Leva isso daqui! E eu não vou pagar por isso! Traz meu pedido. AGORA!
A gerente se retira e busca o pedido da Madame, que acabara de ficar pronto.
- E TRAZ SAL - berrou a mulher.
O pedido é entregue à Madame, assim como o potinho contendo mini-sachês de 1 grama de sal. A gerente refaz a pergunta:
- Gostaria de algo para beber?
- Uma coca zero. Vocês têm coca zero, né? Porque ontem eu vim aqui e não tinha. Eu acho um absurdo um restaurante desse nível não ter coca-zero.
- Senhora, não é que não temos coca zero. É que não trabalhamos com a Coca-cola, e sim com a Pepsi.
Nesse momento, a Madame alterou mais ainda o seu tom de voz:
- O QUÊ?! Como não trabalham? E se o cliente quiser coca-cola, como faz? Não toma? É um absurdo. Vocês TÊM que oferecer de TUDO, para que o CLIENTE possa escolher!!
Fez uma pausa, olhando com raiva para a gerente e continuou.
- Então traz um guaraná pra mim. E RÁPIDO!
A gerente, que já não estava mais com seu ar inicial de polidez, se retirou e voltou com o guaraná, colocando o copo e a latinha na mesa, abrindo-a.
- TÁ ERRADO! Você tem que perguntar ao cliente se ele quer que você abra ou se ele mesmo quer abrir! Você ainda botou seu dedo no anel da latinha e infectou tudo. Sabe-se lá onde sua mão passou! Me traz outro guaraná. Esse tá sujo.
- Senhora, não tem como abrir a latinha de outra forma.
- EU QUERO OUTRO GUARANÁ. AGORA. TIRA ESSE DAQUI.
A gerente, furiosa, buscou outro guaraná e colocou na mesa.
- TÁ ERRADO! Você BATEU o guaraná na mesa! Você tem que colocá-lo LENTAMENTE. TIRA O GUARANÁ E COLOCA DE NOVO.
- Senh....
- TIRA O GUARANÁ E COLOCA DE NOVO!
A gerente, com o pouco de paciência que sobrara, levanta o guaraná e o coloca lentamente sobre a mesa.
- MAIS LENTAMENTE, MAIS LENTAMENTE!
Nesse momento, a paciência da gerente esgota-se:
- Olha aqui, minha senhora. Se você não está contente com o nosso atendimento, a senhora pode se retirar daqui. Ninguém está te forçando a comer aqui.
- MAS EU QUERO COMER AQUI!
- Mas isso não te dá o direito de gritar com as pessoas, como se fossem seus escravos, como se fossem animais! Se você quer ser bem atendida, comece a tratar as pessoas melhor!
- MAS EU SOU CLIENTE, VOCÊS TEM QUE ME ATENDER BEM. EU VOU NO PROCON! COMO É SEU NOME? E DAQUELA OUTRA QUE TAVA ME ATENDENDO? E DAQUELE GORDO ALI NO BALCÃO E DE TODO MUNDO? EU VOU DENUNCIAR VOCÊS!!
- Isso não te dá o direit....
- COMO É SEU NOME? NÃO VAI FALAR? TÁ COM MEDO?
- Meu nome é Denise.
- MENTIRA. VOCÊ É UMA MENTIROSA. VOCÊ NÃO TEM CORAGEM DE FALAR SEU NOME VERDADEIRO.
- ESSE É O MEU NOME, SENHORA!
- NÃO É NADA, SUA MENTIROSA.
E nesse momento, a Madame, reclamando sem parar, levanta-se, sai do restaurante e sobe a escada rolante ao lado.
Nosso casal, que comia e ria baixinho enquanto tudo acontecia, começa a rir alto e olha pro casal ao lado, onde a moça está com o indicador apontado na lateral da cabeça, rodando-o e sussurrando "Que louca!".
A garçonete retorna para retirar os pratos de Alice e Pedro, e também começa a rir.
- Pode trazer a conta por favor? Pergunta Pedro.
- Claro, diz a garçonete, ainda com um tom de riso na voz.
- E traz o Visa também, completa Pedro.
Quando ela retorna com a conta e a máquina, ela olha pra frente, ri e comenta baixinho com o casal:
- A maluca tá voltando.
Alice olha para a porta e vê a mesma cena de antes: uma gorda mal-vestida, com ar superior, entrando. Mas agora ela tem uma aparência furiosa. Ela dirigi-se ao balcão, onde se encontra todos os funcionários, exceto a garçonete, que ainda está na mesa com o casal, e volta a gritar:
- Eu vou no PROCON! Vou denunciar todos vocês por calúnia e mal-atendimento! Porque vocês vendem um produto mas apresentam outro no cardápio. A comida não tem nada a ver com o que o cardápio mostra! Vocês TEM que colocar que as imagens são meramente ilustrativas!
Nesse momento, Pedro abre o cardápio e lê no canto da página: "Imagens meramente ilustrativas". Ele ri.
A gerente ainda se dá ao trabalho de ser educada:
- Senhora, por favor, retire-se do nosso estabelecimento ou eu vou chamar a segurança.
A Madame sente-se ofendida e retruca:
- VAI CHAMAR A SEGURANÇA?! ENTÃO CHAMA! CHAMA MEEEESMO! EU VOU CHAMAR É A POLÍCIA PRA VOCÊS, SEUS LUDIBRIADORES! DEIXA, DEIXA QUE EU MESMA CHAMO A SEGURANÇA PRA VOCÊS.
E sai do restaurante, em direção ao segurança que se encontra ao lado da escada rolante.
Todos os garçons e funcionários dos restaurantes vizinhos estão na porta, olhando aquela cena, aquele barraco.
A Madame volta com um segurança alto, bem trajado, com um rádio walk-talk em uma das mãos.
- Foi aqui, senhor segurança. Aqui eles enganam as pessoas! Mostram uma coisa e vendem outra completamente diferente!
Pedro e Alice, que já haviam comido e pagado, ainda estão lá, sentados. Alice havia pedido à garçonete para permanecer ali e assistir ao desfecho dessa tragicômica cena, e a garçonete, rindo, disse que poderiam ficar, sem problemas, afinal, a casa estava vazia.
O segurança fala algumas palavras incompreensíveis em seu walk-talk e, em questão de segundos, outros seguranças aparecem. Mais uns 4, pelo menos.
A Madame não pára de reclamar, a gerente não pára também.
Até que a Madame diz:
- A COMIDA ESTAVA ESTRAGADA E SALGADA! UM ABSURDO ISSO!
Todos se olham. De onde ela tirou isso? A comida não estava "perfeita" há uma hora atrás? Não foi ela quem ordenou que trouxessem o sal?
E ela continua, andando pelo restaurante:
- EU VIREI AQUI TODOS OS DIAS, SE DEUS QUISER, PRA FALAR COM TODO MUNDO QUE A COMIDA DAQUI NÃO PRESTA, QUE VOCÊS VENDEM PRODUTOS DIFERENTES DO QUE ANUNCIAM.
Ela anda em direção ao casal que estava no canto.
- SE EU FOSSE VOCÊS, EU LEVANTARIA DAQUI AGORA E IRIA EMBORA SEM PAGAR, PORQUE É UM ABSURDO O QUE ELES ESTÃO FAZENDO!
Às vezes, ela parava e colocava as mãos juntas no rosto, tapando os olhos, como se estivesse orando. E depois voltava a reclamar.
Essa história, meus leitores, durou cerca de duas horas. Quando, enfim, a Madame resolveu ir embora, os seguranças também se foram e, assim, a paz e o silêncio voltam a reinar no restaurante.
Nosso casal, percebendo que mais nada aconteceria, resolveu se retirar também e, como eles notaram que a mulher tomou o mesmo caminho que tomariam para sair do shopping, resolveram esperar um pouco, para não cruzar com ela. Eles se despedem de todos no restaurante, dos funcionários até do casal vizinho, como se fossem amigos. Todos retribuem o adeus, da mesma forma amigável.
Quando estão quase na saída do shopping, avistam a Madame ao longe, parada, novamente com as mãos no rosto. Eles resolvem passar do outro lado do saguão. Sabe-se lá do que ela é capaz. Vai que ela havia percebido que eles ficaram lá apenas para presenciar o desfecho?
Quando estão saindo, ela sai também, ao lado deles. Pega um táxi na porta e vai-se embora. Alice abre o guarda-chuva e, abraçada a Pedro, enfrentam a chuva para voltarem para casa

Nenhum comentário:

Postar um comentário